Uma vez que a reserva legal é uma limitação
administrativa e sua averbação não é constitutiva e independe de ingresso no
fólio real para concretizar seu efeito, entendo não ser necessária a aplicação
do princípio da especialidade objetiva.
Contudo, a maioria das serventias exige da parte
interessada a exata descrição do bem como pressuposto de admissibilidade,
alegando que não é possível obter segurança jurídica se houver diferença da
área do termo do IEF comparado com a matrícula.
Vale dizer que a averbação do termo é apenas para
dar publicidade ao ato, nada mais. A reserva legal não tem condão para
RETIFICAR a área do imóvel.
Seria muito rigor exigir a Retificação de área,
tendo em vista a finalidade da averbação, como já dito, que é dar publicidade.
Vejamos o parecer a respeito de um procedimento de susictação de dúvida da Comarca de Tanabi/SP:
"REGISTRO DE IMÓVEIS – Averbação - Reserva legal
encravada no bem imóvel rural – Incompatibilidade entre as descrições
constantes do título e da matrícula - Princípio da especialidade –
Flexibilização – Especialização suficiente para a localização do espaço territorial
ambientalmente protegido – Preponderância dos princípios da segurança jurídica
e da publicidade – Função socioambiental do Registro de Imóveis –
Desqualificação registrária afastada – Recurso provido.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,
Silvio Sinezio Coghi e Maria Neuza Lessi Coghi,
inconformados com o comportamento do Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da
Comarca de Tanabi/SP, que recusou a averbação de reserva legal requerida,
sob a alegação de ofensa ao princípio da especialidade, suscitaram dúvida
inversa: para eles, a planta planimétrica e o memorial descritivo que
instruíram seu pedido revelam a observação do princípio da especialidade.
Ponderam que a área da reserva legal,
equivalente a 20% da área do bem matriculado sob o n.º 15.719, foi
identificada, destacada e demarcada, não importando, ademais, alteração do
perímetro do imóvel rural, em cujos limites, aliás, encontra-se: para a
averbação perseguida, obrigação legal imposta pela legislação em vigor, basta a
certeza de que a reserva legal está localizada dentro do perímetro do imóvel
(fls. 02/07).
O pedido dos interessados, voltado à averbação e
instruído com documentos (fls. 08/28), restou indeferido (fls. 46/47), após a
manifestação do Registrador – que, amparado em documentos (fls. 32/42),
ratificou os motivos da desqualificação impugnada, acrescentando que, na
descrição do imóvel, os graus e rumos magnéticos são omitidos em alguns de seus
pontos de amarração e que a descrição da reserva legal, cuja posição
exata não é possível localizar, utiliza linguagem técnica distinta (fls. 30/31)
-, e o parecer do Ministério Público, opinando pela improcedência do pedido
(fls. 44/45).
Os interessados, diante da sentença proferida, cuja
reforma pretendem, interpuseram apelação, reportando-se às ponderações
anteriores, às quais somadas as seguintes afirmações: a descrição da reserva
legal se valeu da técnica mais moderna e precisa e descabe, in concreto,
obrigá-los a proceder à retificação do registro (fls. 49/57).
Recebido o recurso no duplo efeito (fls. 58), e após a
representante do Ministério Público manifestar-se em primeira instância (fls.
60/61), a Procuradoria Geral de Justiça, uma vez sinalizando que a apelação
deveria ser conhecida como recurso administrativo, com remessa dos autos para a
Corregedoria Geral da Justiça, propôs o desprovimento do recurso (fls. 66/69).
Vossa Excelência, conhecendo a apelação como recurso
administrativo, pois os interessados buscam assento de reserva legal,
passível de averbação, determinou a remessa dos autos para esta Corregedoria
Geral da Justiça (fls. 70/71).
É o relatório.
OPINO.
Visualiza-se, ao encarar-se o tratamento dispensado
pela Constituição Federal de 1988 ao ambiente, a sua dupla dimensão,
pois incorporado ao ordenamento jurídico pátrio tanto sob a perspectiva de
direito subjetivo - direito fundamental de terceira geração, assentado na
fraternidade, na solidariedade(1) -, como sob o ângulo de tarefa estatal e
comunitária.(2)
Conforme o artigo 225 da CF/1988, todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à
sadia qualidade de vida, a ser defendido e preservado pelo Poder Público e pela
coletividade, para as presentes e futuras gerações: trata-se de um (o primeiro)
direito intergeracional, titularizado por vivos e nascituros(3).
Com efeito, e a reboque da lição do afamado jurista
português José Joaquim Gomes Canotilho, “o sujeito relevante já não é apenas a
pessoa ou grupos de pessoas. Passa a ser também o ‘sujeito geração’. Na verdade
os comportamentos ecológica e ambientalmente relevantes da geração actual
condicionam e comprometem as condições de vida das gerações futuras.”(4)
Ao dar concretude ao inciso III do § 1.º do artigo 225
da CF/1988(5), o artigo 12 da Lei n.º 12.651, de 25 de maio de 2012, dispôs,
prevendo uma obrigação real de facere, transmissível, assim, aos
sucessores(6), que “todo imóvel rural deve manter área com cobertura de
vegetação nativa, a título de Reserva Legal”, respeitando percentuais mínimos
definidos em lei: anteriormente, o artigo 16 da Lei n.º 4.771, de 15 de
setembro de 1965, com a redação determinada pela Medida Provisória n.º
2.166-67, de 24 de agosto de 2001, já impunha a obrigação propter rem (por
causa da coisa) referente à reserva legal florestal.
As obrigações reais, consoante Manuel Henrique
Mesquita, têm origem no estatuto de um direito real, ao qual subordinada a
relação jurídica de soberania estabelecida entre o titular e a coisa e que, por
conseguinte, “compreende ou engloba não só os poderes que são conferidos
ao sujeito de um ius in re e as restrições ou limites a
que a sua actuação deve obedecer, mas também as vinculações de conteúdo
positivo a que se encontre adstrito e que tanto podem consistir em deveres
decorrentes de normas de direito público, como em obrigações stricto sensu,”
derivadas de normas de direito privado que impõem uma prestação de dare ou
de facere.(7)
O artigo 3.º, III, da Lei n.º 12.651/2012, em termos
similares aos do regramento pretérito(8), definiu reserva legal: “área
localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos
do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos
recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos
processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o
abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa”.
É verdade, porém, que, em confronto com a lei revogada,
a vigente contemplou uma involução - cuja constitucionalidade é duvidosa,
diante da proibição de retrocesso socioambiental(9) -, ao permitir, no seu
artigo 15, com condicionamentos e importante ressalva(10), não ignorados, o
cômputo das áreas de preservação permanente no cálculo do percentual da reserva
legal, inadmitido na ordem jurídica anterior: de fato, tal flexibilização
legislativa - representando um inegável afrouxamento da proteção ambiental
-, promoveu, na oportuna advertência de Guilherme José Purvin de Figueiredo, “a
redução dos espaços protegidos”(11).
Vossa Excelência, recentemente, ao realçar que sobre a
propriedade “recai uma hipoteca social em favor não apenas dos seres humanos já
nascidos, mas até dos nascituros”, assim tratou da reserva legal florestal,
no julgamento do recurso de Agravo de Instrumento n.º
0018840-44.2012.8.26.0000, em 01.º de março de 2012:
A reserva florestal legal é o mínimo de cobertura
vegetal obrigatoriamente mantida pelo proprietário e regenerada se a
propriedade já não a detiver. O objetivo da reserva legal é impedir que a
cupidez, a insensatez, a ignorância humana acabem com a vegetação nativa e
substituam o solo por monocultura, por criação de gado ou por parcelamento de
solo. Com evidente queda da qualidade de vida, empobrecimento da
biodiversidade, alteração nociva do clima e outras nefastas consequências.
Logo, a reserva legal florestal, obrigação
instituída por lei, é condição para a propriedade rural cumprir a sua função
social - sua função socioambiental -, é, em suma, pressuposto da legitimidade
do direito de propriedade rural: expressa um limite interno, permanente e
positivo ao direito de propriedade sobre imóvel rural, introjetando, na sua
estrutura, exigências de índole promocional dos valores constitucionais básicos.(12)
Ora, “a função social da propriedade está imbricada com
a sua destinação ecológica. A propriedade rural só cumpre com sua função social
se atender à proteção do meio ambiente.”(13)
Aliás, consoante os incisos I e II do artigo 186 da
CF/1988, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente são
requisitos indispensáveis - exigidos ao lado de outros, previstos nos incisos
III e IV -, para o cumprimento da função social da propriedade rural.
A defesa do meio ambiente é um dos princípios da ordem
econômica constitucional (artigo 170, V, da CF/1988) e, por sua vez, o § 1.º do
artigo 1.228 do Código Civil estabelece que “o direito de propriedade deve ser
exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de
modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial,
a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o
patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das
águas” (grifei).
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso
Especial n.º 948.921/SP, em 23 de outubro de 2007, relator Ministro Herman
Benjamin, deixou assinalado: “as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a
Reserva Legal densificam e concretizam a função ecológica da
propriedade (arts. 170, VI, 186, II, e 225, da Constituição Federal)”,
“representam os pilares dorsais da conservação in situ da flora no
Brasil”, “apresentam-se como imposições genéricas, decorrentes diretamente da
lei. São, por esse enfoque, pressupostos intrínsecos ou limites
internos do direito de propriedade e posse.”
Tal constatação, atrelada à tessitura contemporânea do
direito real de propriedade, instituto redesenhado, redimensionado, pois histórico
e em permanente evolução, repercute, é claro, sobre a missão institucional dos
serviços de registro de imóveis, sobre o papel político dos oficiais de
registro de imóveis, guardiões da propriedade imobiliária, do direito de
propriedade - ora funcionalizado -, constitucionalmente protegido, a conferir
especial relevância à averbação da reserva legal florestal.
Entre as características da reserva legal,
convém, escorado no magistério de Paulo Affonso Leme Machado, destacar duas: a)
a inalterabilidade da destinação, pois a disciplina legal vigente, tal como
a revogada(14), dando “caráter de relativa permanência à área florestal do
País”, impôs, para não frustrar a finalidade de conservação, de preservação, “a
imutabilidade da destinação da Reserva Legal Florestal de domínio privado, por
vontade do proprietário”; e o b) regime de manejo florestal sustentável,
previsto tanto na legislação pretérita como na atual(15), introdutor de
restrições legais de exploração da área de reserva legal florestal.
Dentro desse contexto, “a área da reserva legal deverá
ser medida, demarcada e delimitada.”(16) Além de pressuposto da legítima
exploração do imóvel rural e, particularmente, da área não atingida pela
limitação legal, a especialização da reserva legal florestal é necessária
para tutela ambiental constitucionalmente idealizada, para a fiscalização do
cumprimento da lei pelos órgãos competentes.
Na justa observação de Antonio Herman Benjamin, bem
lembrada por Vossa Excelência no julgamento da Apelação Cível com Revisão n.º
402.646-5/7-00, da qual relator, ocorrido no dia 29 de junho de 2006, “só se
conserva a Reserva Legal quando se conhece a sua localização. Do contrário,
inviabiliza-se a fiscalização ambiental, primeiro passo para o aparecimento da Reserva
Legal Migratória: hoje está aqui, amanhã estará acolá, ao sabor das
conveniências do proprietário e da necessidade de burlar eventual controle
fiscalizatório.”
A especialização da reserva legal no imóvel rural é
confiada ao proprietário/possuidor, sujeitando-se, no entanto, ao controle e à
aprovação dos órgãos ambientais estatais, tanto à luz da legislação revogada
como da vigente(17), imprescindível, ademais, para impedir o fracionamento do
espaço protegido - que deve ser contínuo, sob pena de proteger-se, contra a ratio
legis, somente vegetações esparsas -, a destinação de área sem relevância
para o meio ambiente e viabilizar a observação dos critérios definidos em lei
para a sua localização geodésica.
Para tornar pública a especialização da reserva legal,
previu-se, no § 8.º do artigo 16 da Lei n.º 4.771/1965, com a redação dada pela
Medida Provisória n.º 2.166-67/2001, a sua averbação, obrigatória, “à margem da
inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente”: mas
porque a reserva legal decorre de lei, o ato registral não é constitutivo da
proteção ambiental nem necessário para a sua eficácia e a sua oponibilidade a
terceiros. Tal circunstância, todavia, não retira sua importância e
necessidade, mas, antes, recomenda, veremos, a relativização do rigor do
princípio da especialidade.
Após acentuar que, para a segurança dos negócios
jurídicos envolvendo os bens imóveis, “qualquer informação que possa limitar o
direito de propriedade deve constar do fólio real”, Marcelo Augusto Santana de
Melo, ao cuidar do princípio da publicidade, afirmou, com propriedade:
A publicidade utilizada no direito ambiental é a
publicidade-notícia, que tem pouca eficácia perante terceiros, não apresentando
qualquer efeito sobre a eficácia do fato registrado. O legislador conferiu ao
Registro de Imóveis, na grande maioria das vezes, em matéria ambiental, o
reforço de uma publicidade já criada ou definida em outros meios, como a
reserva legal florestal, áreas contaminadas e área de proteção e recuperação de
mananciais.
Muitas restrições administrativas, agora definidas como
espaços territoriais especialmente protegidos, já possuem publicidade
decorrente da própria lei que as constituiu, porém, para a segurança jurídica e
cumprimento de obrigações decorrentes da limitação, seria aconselhável não se
confiar somente na publicidade legal, mas também na publicidade imobiliária,
para dar conhecimento e vincular definitivamente futuros adquirentes. O homem
médio não possui o hábito de leitura de textos legislativos, ainda mais dos
três entes políticos, de forma que o sistema jurídico não pode valer-se tão
somente dessa publicidade ilusória e fictícia.(18)
Assim, para não sacrificar a segurança jurídica e a
publicidade, oportunizando à averbação da reserva legal a realização de
sua finalidade em prol da tutela dos espaços ambientais legal e especialmente
protegidos, releva – valorando a precípua finalidade dos serviços de registro
de imóveis, os efeitos atribuídos ao ato registral em foco, a relevância do bem
jurídico tutelado, a precariedade de muitas descrições imobiliárias e, ainda, a
diversidade de sistemas de individualização dos bens imóveis -, abrandar a
severidade do princípio da especialidade.
De mais a mais, trata-se de um princípio setorial,
específico dos serviços de registro de imóveis, que, enfocado sob o aspecto
objetivo, visa a garantir a segurança jurídica, princípio jurídico
fundamental que, notadamente, ilumina todos os serviços notariais e de
registro(19), motivos pelos quais a concreção daquele não pode conduzir ao
enfraquecimento deste, dotado de ascendência axiológica.
E, certamente, a especialidade objetiva, se exigida com
excessivo rigor - então para averbação da reserva legal,
especialmente daquela encravada na propriedade imobiliária -, conduzirá à
fragilização, à desidratação do princípio da segurança jurídica, o que é um
contrassenso. Ferirá, na realidade, o princípio da razoabilidade, seja porque,
na hipótese ventilada, o meio não é adequado ao fim perseguido (segurança
jurídica), seja porque, com a exigência cogitada, o que se perde, confrontado
com o ganho, basicamente de ordem formal, tem maior importância
(proporcionalidade em sentido estrito).
Não sem razão, ao cuidar da principal dificuldade
encontrada para averbação da reserva legal – qual seja, a
incompatibilidade entre os documentos apresentados, guiados por sistemas
modernos e precisos de descrição da área legalmente protegida, e a
superficialidade e imperfeição das identificações imobiliárias antigas -,
Narciso Orlandi Neto sustentou a necessidade de temperar o princípio da
especialidade. De fato, ponderou:
Se a reserva estiver encostada numa das divisas do
imóvel, bastará repetir, na descrição, o que consta da matrícula (ou
transcrição), copiando literalmente a parte da descrição relativa àquela
divisa. Evite-se substituir critérios antigos de descrição (valas, divisores de
águas, touceiras etc.) por termos técnicos (rumos, ângulos etc.). As divisas da
reserva internas ao imóvel são descritas livremente e, de preferência,
tecnicamente.
Se a reserva for toda interna, encravada, o
proprietário descreverá as divisas tecnicamente, mas procurará localizá-la no
todo, isto é, fará referência aos principais pontos da descrição que consta do
Registro.(20)
Compartilhando o mesmo entendimento, Marcelo Augusto
Santana de Melo é taxativo: “o registrador imobiliário deve, então, esforçar-se
para estabelecer um ponto de amarração entre reserva e descrição registrária,
mesmo porque, ao contrário da servidão, não se trata de direito real e, sim, de
limitações administrativas, não sendo a averbação constitutiva.”(21)
Consideradas, além disso, as diferenças existentes
entre cadastro e registro, destacadas por Marcelo Augusto Santana
de Melo(22), há mais um motivo para a suavização da rigidez do princípio da
especialidade, porquanto aquele, não este, registro, serve de
instrumento para Administração controlar a arrecadação de tributos, o
cumprimento de funções administrativas e, no que interessa particularmente a
este parecer, monitorar o acatamento das obrigações ambientais.
Isto, a propósito, ficou claro com a promulgação da Lei
n.º 12.651/2012, que, no seu artigo 29, caput, previu: “é criado o
Cadastro Ambiental Rural – CAR, no âmbito do Sistema Nacional de Informação
sobre Meio Ambiente – SINIMA, registro público eletrônico de âmbito nacional,
obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as
informações ambientais das propriedades e posse rurais, compondo base de dados
para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao
desmatamento” (grifei).
E a inscrição no CAR, ainda não implantado, meio pelo
qual será efetuado o registro obrigatório da área de reserva legal no
órgão ambiental competente, pressupõe a exibição de planta e memorial
descritivo contendo a indicação das coordenadas geográficas com pelo menos um
ponto de amarração, ou seja, depende da especialização da reserva legal,
necessária ao controle, ao monitoramento e à proteção objetivados pelo
legislador.(23)
Portanto, não é razoável que um excessivo apego ao
princípio da especialidade, desautorizado pelos peculiares efeitos do ato
registral pretendido, impossibilite a averbação da área de reserva legal e,
com isso, em detrimento dos princípios da segurança jurídica e da publicidade –
princípios jurídicos fundamentais -, e, reflexamente, da diretriz
constitucional voltada à defesa do meio ambiente, impeça o Registro de Imóveis
de cumprir a sua função de proteção e de controle do tráfego imobiliário, de
transparência dos negócios imobiliários e, particularmente, inviabilize-o de
robustecer a publicidade ambiental e de realizar a sua função socioambiental,
associada à estrutura atual do direito de propriedade.
Destarte, fundado nessas premissas, penso, o pleito
recursal admite acolhimento: a área de reserva legal florestal, descrita
com base em sistema moderno e precisão técnica, fazendo menção às coordenadas
geográficas dos vértices definidores de seus limites, georreferenciadas ao
Sistema Geodésico Brasileiro, está encravada no imóvel rural de propriedade dos
recorrentes, objeto da matrícula n.º 15.719 do Registro de Imóveis de
Tanabi/SP.
A planta planimétrica e o memorial descritivo, ao
definirem o espaço ocupado pela reserva legal florestal na superfície
terrestre, com os seus limites e confrontações, malgrado com emprego de
linguagem técnica distinta – contudo mais sofisticada -, da utilizada na
matrícula (fls. 32/35), bastam para a averbação recusada pelo Oficial de
Registro: satisfeita a especialização da área especialmente protegida e
evidenciada sua localização no interior da propriedade rural, a desqualificação
questionada se mostrou desacertada.
O memorial descritivo revela que a área da reserva
legal confronta exclusivamente com o imóvel pertencente aos recorrentes
(fls. 12/14), enquanto a planta planimétrica, também demonstrando que o espaço
ambiental legalmente protegido é interno, encravado, situa-o em relação ao
todo, referindo-se, em harmonia com a descrição expressa na matrícula (fls.
32/35), às confrontações do imóvel rural (fls. 10 e 11).
Vale dizer: a dissonância constatada entre a forma de
descrição do título e o método descritivo empregado na matrícula do bem imóvel
é insuficiente para, no caso vertente, impedir a averbação da reserva legal
florestal, viabilizada, em contrapartida, à luz da flexibilização, acima
justificada, do princípio da especialidade.
Tal averbação, a par de escudada no termo de
responsabilidade de preservação de reserva legal e no termo de
compromisso de recuperação ambiental (fls. 17/19 e 20/21), será
concretizada à vista da planta planimétrica e do memorial descritivo (fls.
10/11 e 12/14), que, então, resguardando a exata localização da área de reserva
legal, permanecerão arquivadas na serventia extrajudicial, permitindo o controle
da disponibilidade quantitativa e qualitativa do imóvel. E aqui, novamente,
calham os lúcidos ensinamentos de Narciso Orlandi Neto:
Realmente, os documentos serão utilizados nos futuros
registros relativos ao imóvel para controle da disponibilidade da reserva. Se o
imóvel todo for alienado, nenhum problema haverá. Mas, se houver alienação de
parte do imóvel, isto é, um desmembramento, o imóvel desmembrado terá de ser
localizado na mesma planta. Com esse procedimento, o oficial terá condições de saber
se a parte onerada permanecerá no remanescente ou se acompanhará o imóvel
desmembrado, para o qual nova matrícula será aberta. É este o controle da
disponibilidade qualitativa.
Enfim, o parecer que, respeitosamente, submeto à
apreciação de Vossa Excelência é no sentido de, revendo a orientação consagrada
no precedente objeto do processo CG n.º 2012/00033291, dar provimento ao
recurso, determinando a averbação da reserva legal perseguida pelos
recorrentes.
Sub censura.
São Paulo, 13 de julho de 2012.
(a) Luciano Gonçalves Paes Leme
Juiz Assessor da Corregedoria
(1) Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional.
11.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 522-524.
(2) Gilmar Mendes Ferreira; Inocêncio Mártires Coelho;
Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 1.304.
(3) José Renato Nalini. O ambiente e o registro de
imóveis. In: Registro de imóveis e meio ambiente. Francisco de Asís
Palacios Criado; Marcelo Augusto Santana de Melo; Sérgio Jacomino (coord.). São
Paulo: Saraiva, 2010. p. 91-112. p. 91.
(4) Estudos sobre direitos fundamentais. 1.ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal: Coimbra Editora, 2008. p. 177- 178.
(5) Artigo 225. (...)
§ 1.º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe
ao Poder Público: (...);
III – definir, em todas as unidades da Federação,
espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo
a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção; (...).
(6) De acordo com o § 2.º do artigo 2.º da Lei n.º
12.651/2012, “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são
transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de
domínio ou posse do imóvel rural.” Aliás, segundo Manuel Henrique Mesquita,
“devem considerar-se ambulatórias todas as obrigações reais de ‘facere’ que
imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa que constitui o
objecto do direito real”, isto é, transmitem-se aos adquirentes, porque
resultam imediatamente da aplicação do estatuto do direito real, porque seu
cumprimento representa interferência direta na coisa subordinada a tal estatuto
e porque, cessada a soberania do alienante sobre a coisa, a realização da
prestação por ele fica impossibilitada (Obrigações reais e ónus reais. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 330-336).
(7) Obrigações reais e ónus reais. Coimbra: Almedina,
2003, p. 99-104.
(8) O inciso III do § 2.º do artigo 1.º da Lei n.º
4.771/1965, com a redação dada pela Medida Provisória n.º 2.166-67/2001, assim
conceituou a reserva legal: “área localizada no interior de uma
propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária
ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos
processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de
fauna e flora nativas”.
(9) “A garantia constitucional da proibição de
retrocesso socioambiental (ou mesmo ecológico, como preferem alguns)
assume importância ímpar na edificação do Estado Socioambiental de Direito,
pois opera como instrumento jurídico apto a assegurar, em conjugação com outros
elementos, níveis normativos mínimos em termos de proteção jurídico do
ambiente, bem como, numa perspectiva mais ampla, de tutela da dignidade da
pessoa humana e do direito a uma existência digna, sem deixar de lado a
responsabilidade para com as gerações humanas vindouras” (Ingo Wolfgang Sarlet;
Tiago Fensterseifer.Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos
Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012. p. 212).
(10) Artigo 15. Será admitido o cômputo das Áreas de
Preservação Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal do imóvel,
desde que:
I – o benefício previsto neste artigo não implique a
conversão de novas áreas para o uso alternativo do solo;
II – a área a ser computada esteja conservada ou em
processo de recuperação, conforme comprovação do proprietário ao órgão estadual
integrante do Sisnama; e
III – o proprietário ou possuidor tenha requerido
inclusão do imóvel no Cadastro Ambiental Rural – CAR, nos termos desta Lei.
§ 1.º O regime de proteção da Área de Preservação
Permanente não se altera na hipótese prevista neste artigo. (...).
(11) Curso de Direito Ambiental. 5.ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012. p. 337.
(12) Segundo o artigo 2.º, caput, da Lei n.º
12.651/2012, “as florestas existentes no território nacional e as demais formas
de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens
de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos
de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta
Lei estabelecem” (grifei).
(13) José Renato Nalini. op. cit., p. 92.
(14) Segundo o § 8.º do artigo 16 da Lei n.º
4.771/1965, com a redação determinada pela Medida Provisória n.º
2.166-67/2001, “a área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição
de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a
alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de
desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste
Código” (grifei). Por sua vez, o artigo 18 da Lei n.º 12.651/2012 prevê:
“a área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente
por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a
alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de
desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei” (grifei).
(15) Conforme o § 2.º do artigo 16 da Lei n.º
4.771/1965, com a redação determinada pela Medida Provisória n.º 2.166-
67/2001, “a vegetação da reserva legal não pode ser suprimida, podendo
apenas ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável, de acordo
com princípios e critérios técnicos e científicos estabelecidos no regulamento,
ressalvadas as hipóteses previstas no § 3.º deste artigo, sem prejuízo das
demais legislações específicas” (grifei). Já consoante o § 1.º do artigo 17
da Lei n.º 12.651/2012, “admite-se a exploração econômica da Reserva
Legal mediante manejo sustentável, previamente aprovado pelo órgão
competente do Sisnama, de acordo com as modalidades previstas no art. 20”
(grifei).
(16) Luís Paulo Sirvinskas. Manual de Direito
Ambiental. 10.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 533.
(17) O § 4.º do artigo 16 da Lei n.º 4.771/1965,
com a redação atribuída-lhe pela Medida Provisória n.º 2.166-67, de 24 de agosto
de 2001, previa: “a localização da reserva legal deve ser aprovada pelo
órgão ambiental estadual competente ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental
municipal ou outra instituição devidamente habilitada, devendo ser
considerada, no processo de aprovação, a função social da propriedade, e os
seguintes critérios e instrumentos, quando houver: I – o plano de bacia
hidrográfica; II – o plano diretor municipal; III – o zoneamento
ecológico-econômico; IV – outras categorias de zoneamento ambiental; e V – a proximidade
com outra Reserva Legal, Área de Preservação Permanente, unidade de conservação
ou outra área legalmente protegida” (grifei). Por sua vez, o artigo 14, caput,
da Lei n.º 12.651/2012, dispôs que “a localização da área de Reserva Legal
no imóvel rural deverá levar em consideração os seguintes estudos e critérios:
I – o plano de bacia hidrográfica; II – o Zoneamento Ecológico-Econômico; III –
a formação de corredores ecológicos com outra Reserva Legal, com Área de
Preservação Permanente, com Unidade de Conservação ou com outra área legalmente
protegida; IV – as áreas de maior importância para a conservação da
biodiversidade; e V - as áreas de maior fragilidade ambiental”, enquanto, segundo
o § 1.º, “o órgão estadual integrante do Sisnama ou instituição por ele
habilitada deverá aprovar a especialização da Reserva Legal após a inclusão do
imóvel no CAR, conforme o art. 29 desta Lei” (grifei).
(18) O meio ambiente e o Registro de Imóveis. In:
Registro de imóveis e meio ambiente. Francisco de Asís Palacios Criado; Marcelo
Augusto Santana de Melo; Sérgio Jacomino (coord.). São Paulo: Saraiva, 2010. p.
17-90. p. 33 e 35.
(19) Conforme o artigo 1.º da Lei n.º 8.935/1994,
“Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa
destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos
atos jurídicos.”
(20) Reservas florestais. In: Revista de
Direito Imobiliário. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 42, p. 46-68,
setembrodezembro 1997. p. 60.
(21) Op. cit., p.
61.
(22) Op. cit., p.
36-38.
(23) Artigo 18. A área de Reserva Legal deverá ser
registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que
trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de
transmissão, a qualquer título, ou de desmatamento, com as exceções previstas
nesta Lei.
§ 1.º A inscrição da Reserva Legal no CAR será feita
mediante apresentação de planta e memorial descritivo, contendo a indicação das
coordenadas geográficas com pelo menos um ponto de amarração, conforme ato do
Chefe do Poder Executivo.(...).
Artigo 29. (...)
§ 1.º A inscrição do imóvel rural no CAR deverá ser
feita, preferencialmente, no órgão ambiental municipal ou estadual, que, nos
termos do regulamento, exigirá do possuidor ou proprietário: (Redação dada pela
Medida Provisória n.º 571, de 2012) (...)
III – identificação do imóvel por meio de planta e
memorial descritivo, contendo a indicação das coordenadas geográficas com pelo
menos um ponto de amarração do perímetro do imóvel, informando a localização
dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Preservação Permanente, das
Áreas de Uso Restrito, das áreas consolidadas e, caso existente, também da
localização da Reserva Legal. (...)
§ 3.º A inscrição no CAR será obrigatória para todas as
propriedades e posses rurais, devendo ser requerida no prazo de 1 (um) ano
contado da sua implantação, prorrogável, uma única vez, por igual período por
ato do Chefe do Poder Executivo.
Artigo 30. Nos casos em que a Reserva Legal já tenha
sido averbada na matrícula do imóvel e em que essa averbação identifique o
perímetro e a localização da reserva, o proprietário não será obrigado a
fornecer ao órgão ambiental as informações relativas à Reserva Legal previstas
no inciso III do § 1.º do art. 29.
Parágrafo único. Para que o proprietário se desobrigue
nos termos do caput, deverá apresentar ao órgão ambiental competente a certidão
de registro de imóveis onde conste a averbação da Reserva Legal ou termo de
compromisso já firmados nos casos de posse.
DECISÃO: Aprovo o primoroso
parecer do Juiz Assessor LUCIANO GONÇALVES PAES LEME e dou provimento ao
recurso administrativo para determinar a averbação da reserva legal, conforme
pretendem os interessados. Ressalte-se a atual orientação da Corregedoria Geral
de Justiça que, ajustando-se aos tempos, às necessidades e ao advento de novas
normativas, não hesita em alterar entendimentos longevos e até então
consolidados. Sempre que se mostrar conveniente, propício e seguro adotar novos
rumos para esta jurisprudência administrativa que tem caráter normativo para as
delegações extrajudiciais, atenderse- á à mudança de rumos, pois a garantia
registaria é instrumento, não finalidade em si e se preordena a abrigar valores
cuja consistência jurídica supera o formalismo.
Publique-se. São Paulo, 26 de julho 2012.
(a) JOSÉ RENATO NALINI,
Corregedor Geral da Justiça. (D.J.E. de 14.08.2012)"
Corregedor Geral da Justiça. (D.J.E. de 14.08.2012)"